Chico Buarque: A lembrança mais remota é a dos meus pais cantarolando músicas antigas, como Último desejo, por exemplo, na casa em São Paulo, na rua Hadock Lobo, onde morei até os oito anos idade. Em 1952, a família foi toda para Roma, mas me lembro também que, antes da viagem, eu ouvia rádio.
Chico: Possivelmente. O rádio era da minha babá, ou melhor, da babá dos sete filhos dos meus pais e depois virou cozinheira. Acho que era a Nacional mesmo, porque um dos programas que a gente ouvia era aquele do primo pobre e do primo rico, o Balança mas não cai. Mas havia muita música, principalmente os sambas e as marchinhas de carnaval, que eu gostava muito. Me lembro da Linda Batista, do Blecaute, da Marlene, da Zilda do Zé, todos eles cantando músicas de carnaval. Depois, na quaresma, mudava a programação e entrava a música de meio de ano, como era chamada. Era samba-canção, bolero, mas que gostava menos disso.
Chico: Antes da viagem para Roma, minha irmã Miúcha ganhou um vitrola, ainda daquelas de dar corda. Não era elétrica não. Quando a gente voltou para São Paulo, dois anos depois, apareceu lá em casa um novo móvel, que, na verdade, era um toca-discos da marca Telefunken. Naquele aparelho ouvi Sílvio Caldas, Ataulfo Alves, Elizeth Cardoso, Roberto Luna, Frank Sinatra, Inks Spots, Lucho Gatica, Trio Los Panchos e mais uma porção de gente. Minha mãe adorava Edith Piaf. Tinha também um disco do Jacques Brel.
Chico: Foi bem mais tarde. O primeiro violão que apareceu lá em casa era da Miúcha, que tinha um ciúme danado do instrumento. Não deixava nem a gente chegar perto. Depois, minha irmã Ana apareceu com outro violão grená, esquisito, que não produzia som nenhum e não dava a menor vontade de tocar. A gente chamava o violão de "catupiri". Miúcha começou a reunir os irmãos, distribuía as vozes e formava um coral para ela acompanhar no violão. Eu não cantava. Quem participava do coral eram os meus irmãos.
Chico: A partir da Bossa Nova. Quando apareceu Chega de saudade, foi um choque tremendo, me lembro perfeitamente. Ficava horas, a tarde inteira ouvindo aquilo, ouvindo, ouvindo, ouvindo... Conhecia o violão de João Gilberto desde o disco da Elizeth Cardoso, Canção do amor demais, um disco que freqüentou muito a Telefunken dos meus pais. João tocou violão em duas faixas, Outra vez e Chega de saudade. Mas a gravação de João Gilberto era diferente. Eu nem sabia que Chega de saudade era do Tom Jobim, tanto que, ao pedir dinheiro aos meus pais para comprar o disco, disse que a música era do Vinicius de Moraes, o autor da letra e amigo do meu pai. Nem me ocorreu que a música era do mesmo autor (com Billy Blanco) de Teresa da praia, um disco que eu havia comprado para dar de presente à Miúcha. Era aquela gravação com Dick Farney e Lúcio Alves.
Chico: Detonou tudo! Ouvia Chega de saudade sem parar. Eu e um amigo meu de rua ficávamos ali, com violão, tentando decifrar a batida e as harmonias de João. Quando saiu o primeiro long-play do João Gilberto, a gente repetia Aos pés da cruz não sei quantas vezes na tentativa de fazer aquela introdução.
Chico: Por morar em São Paulo, eu levava uma desvantagem em relação ao pessoal do Rio. Não havia televisão na minha casa. De vez em quando, chegava um amigo, dizendo: "Vi aquele cara esquisito que você gosta na televisão." João Gilberto apareceu como uma coisa misteriosa. De vez em quando, um amigo perguntava: "É verdade que ele é viado?" "É viado", garantia outro. Ele era diferente de tudo até para um jovem de 18 anos. Eu tinha 14 anos e, na época, ter quatro anos a menos significava uma diferença brutal. Acho que, por isso, João pegou muito o pessoal da minha idade. Aliás, o que estou falando é comum ao pessoal da minha geração. Já vi o Gil, o Caetano, o Edu, todo mundo falando onde estava quando ouviu Chega de saudade pela primeira vez. Foi demais pra todo mundo. Quem não tinha aquela idade não estava na hora certa, no lugar certo, talvez não fosse capaz de perceber. Ou era mais velho, já não estava na idade de ser, vamos dizer, fulminado por um tipo de coisa assim, ou era muito novo para se interessar por aquilo. Conversei com pessoas que tinham, na época, 10 anos de idade e elas disseram que não entenderam nada.
Chico: Eu criticava minha irmã porque ela tocava violão "bossa velha". Não gostava daquilo, eu só queria saber de bossa nova. Durante alguns anos, fui um seguidor fanático da bossa nova. Reneguei tudo aquilo que havia escutado antes. Engraçado é que, pouco antes disso, gostava muito de Elvis Presley, Little Richards, essa coisa toda. Gostava também de Frank Sinatra, das orquestrações de Nelson Riddle, ouvia discos de jazz na casa de um amigo, Milles Davis, Oscar Peterson, Mingus, mas a bossa nova era uma coisa moderna e era música brasileira.
Chico: Não me lembro... Acho que me apropriei do violão da Miúcha.
Chico: A gente começava a procurar acordes. Eram horrorosos, mas a gente achava que estava bom. Talvez por incapacidade de reproduzir os acordes do João Gilberto, comecei a inventar, a compor. Tentava fazer uma música parecida com a que ouvia o João tocar. Mas já sabia que não conseguiria fazer nada igual.
Chico: Pedaços. Pulando uma escala, pulando um degrau, comecei a fazer minhas músicas. Como não conseguia reproduzir, imitava.
Chico: Com letra. Antes disso, já escrevia bastante nos jornais do colégio. Em Roma, na escola americana, escrevia em inglês. Lembro de um bilhete da professora, que guardei até pouco tempo (deve estar guardado em algum lugar), que dizia: "Um dia, ainda vou ler alguma coisa escrita por Francisco Buarque de Hollanda."
Chico: Primeira, primeira, não sei, mas me lembro de uma chamada Anjinho de papel e de outra com o nome de Canção dos olhos.
Chico: Por aí. Me lembro de ter cantado essas músicas num showzinho do colégio em que estudava, o Santa Cruz.
Chico: Tocava e cantava. Aliás, eu disse que não tocava outras músicas, mas isso era bem no comecinho, mas, na verdade, forçando um pouquinho a memória, me lembro de ter cantado naqueles showzinhos Primavera e Minha namorada. Em São Paulo, um sujeito que soubesse tocar bossa nova numa festa fazia o maior sucesso. Naquela época, eu passava as férias no Rio. Me lembro de uma vez, em Petrópolis, eu via tantas pessoas tocando e me dei conta de quanto eu não sabia de violão. Outra vez, na praia de Ipanema, em frente ao Country, comecei a tocar e apareceu o Nelsinho Mota e tirou o violão da minha mão antes da música acabar: "Espera aí, tem um camarada que toca..." Acho que era ele mesmo ou alguém que tocava melhor do que eu. Ele tinha acesso a essa gente toda. Nunca falei com ele desse episódio. Foi em 1961, por aí.
Chico: Tinha, o Olivier, que aprendeu junto comigo mas era mais aplicado do que eu. A gente trocava informações e ele me passava uns acordes. Dando um pulo no tempo, me lembro de fazer um acorde e João Gilberto me dizer: "Não faz assim. Faz esse aqui."
Chico: Freqüentava. Mas foi depois. Por isso, dei um pulo no tempo. Já havia gravado Pedro Pedreiro, meu primeiro disco. Antes disso, não tinha quem me ensinasse. Eu vinha ao Rio, via as pessoas tocando e me dei conta de que estava atrasado. Em São Paulo, dava pra enganar com aqueles acordes, mas no Rio não dava. Aí, fui prestando atenção. Depois, conheci Toquinho, que havia estudado com Paulinho Nogueira e sabia violão. Olhava quando ele tocava e fui aprendendo alguma coisa.
Chico: Já falei de Anjinho de papel, da Canção dos olhos e havia também uma marchinha que eu tocava nos shows estudantis em São Paulo, a Marcha para um dia de sol, gravada por uma cantora paulista muito boa, Maricenne Costa. Depois, fiz Sonho de um carnaval, que concorreu no festival da TV Excelsior, em 1965, cantada por Geraldo Vandré, com arranjo do Erlon Chaves. Foi aquele festival que Edu Lobo e Vinicius de Moraes venceram, com Arrastão, cantada por Elis Regina. Minha música não ganhou nada, mas foi classificada para a final, o que recebi como uma vitória. Também me lembro de ter participado de uma novela do Roberto Freire na televisão. Era uma novela com Eva Vilma e John Herbert. Eu era o garoto que aparecia numa festa para tocar bossa nova. Cantei uma daquelas bossas novas que fazia na época, chamada Teresa tristeza, que até Eduardo Conde gravou mais tarde. Mas era uma canção amadora, que fiz antes de Sonho de um carnaval.
Chico: Isso mesmo. Quando fiz Pedro Pedreiro, tive a sensação de que pela primeira vez estava compondo uma música realmente minha, que já não era mais imitação de bossa nova. Daí em diante, as coisas começaram a acontecer.
Chico: Mas eu achava Pedro Pedreiro mais original. Cantei essa música num programa de auditório da Rádio América e, quando cheguei naquele trecho, "esperando o sol, esperando o trem", alguém fez uma imitação do apito do trem que quase me derrubou. De qualquer maneira, a música chamou a atenção de alguém e fui convidado para gravar um compacto simples na RGE, ainda uma pequena gravadora de São Paulo. Naquela época, havia muitos shows estudantis e eu era convidado a participar. Havia um radialista em São Paulo, Válter Silva, o Pica-pau, que apadrinhou a gente. A gente era o Toquinho, o Taiguara, eu, uma cantora chamada Ivete, outra chamada Ana Lúcia. Começamos a cantar na primeira parte dos shows de bossa nova. Éramos nós, os amadores de São Paulo. Na segunda parte, era o pessoal do Rio.
Chico: Fez, principalmente em São Paulo, onde as músicas já eram conhecidas. Daí, fui contratado pelo TV Record e passei a cantar num esquema profissional. Logo depois, fui convidado para cantar num programa de televisão no Rio, num programa, aliás, que eu não tinha a menor idéia do que se tratava. Peguei um ônibus e vim para o Rio. Cantei e o apresentador elogiou a música. Era o Flávio Cavalcanti. Depois, alguém falou: "Fiquei com medo que ele quebrasse seu disco." Ele quebrava os discos com as músicas que não gostava. Eu não sabia disso, pois não via televisão. Na minha casa não se via televisão.
Chico: A primeira pessoa a ter um aparelho de TV lá em casa foi a babá. Ela passou do rádio para a televisão na época dos festivais. A televisão dela passou a ser a televisão da casa.
Chico: Estava começando a ser o Chico Buarque. Na Record, havia uma parada de sucessos chamada Astros do disco, que começava com os últimos colocados, os discos colocados em trigésimo lugar, trigésimo não sei quanto. Eu entrava assim: "Em vigésimo primeiro lugar, Pedro Pedreiro." Aos poucos, eu ia entrando nos outros programas, sempre para cantar Pedro Pedreiro. Já não agüentava mais.
Chico: É verdade. Isso aconteceu em 1965. No ano seguinte, a peça venceu o Festival de Nancy.
Chico: Logo no início do ano, Nara Leão saiu com três músicas minhas no disco dela. Aquilo foi muito importante pra mim. Ser gravado por Nara Leão era uma marca de qualidade. Ela era muito conhecida e muito prezada pelo repertório, pela descoberta de novos compositores que estavam esquecidos, como Cartola, Nélson Cavaquinho e Zé Kéti, e de gravar músicas de autores novos como Edu Lobo, Sidney Miller e eu. Naquele disco, havia três músicas minhas: Olê, olá, Pedro Pedreiro e Madalena foi pro mar.
Chico: Muito intuitiva. Só podia ser, porque eu não tinha conhecimento teórico nenhum.
Chico: Foi a música do festival da Record. Tirou o primeiro lugar, empatada com Disparada, do Téo de Barros e Vandré. Depois do festival, fui convidado para participar de um show com Odete Lara e MPB-4, na boate Arpège, dirigido por Hugo Carvana e Antônio Carlos Fontoura. E resolvi morar no Rio. Nasci no Rio, mas fui cedo para São Paulo. Meu apelido em São Paulo era Carioca. Antes de ser Chico Buarque, eu era o Carioca.
Chico: A partir do meu encontro com Tom Jobim, em 1967. Tom foi comigo à Lapa para comprar um piano que ele indicou. Era um piano do tipo armário. Comecei a tomar aulas com Vilma Graça.
Chico: Durante um ano estudei com ela e aprendi tudo o que sei sobre teoria. Claro que aprendi também lidando com meus parceiros músicos. Uma vez, fiz uma letra pro Toquinho, Lua cheia. E musiquei a poesia de João Cabral de Melo Neto em Vida e morte severina. Mas, normalmente, fazia letra e música. Achava que não precisava de parceiros. Comecei a fazer letra para o Tom, depois para o Francis Hime, para o Edu Lobo, isso tudo me acrescentou muito na música. Tom tinha a faculdade de ser um mestre sem ser didático. Pegava a sua música, colocava um acorde dele e falava assim: "Você é um craque, hem!" Ele rearmonizava. Se bem que me lembro muito do Tom também me dizer pra eu preservar de certa forma a minha "ignorância", ou seja, o que eu tinha de espontâneo, a minha intuição musical. Mas havia aquelas coisas que eu devia corrigir.
Chico: Eu já cantava A banda para os amigos, nos botequins. Só não podia cantar em público. Nesse tempo, eu cruzava muito com Gilberto Gil, que morava em São Paulo e trabalhava na Gessy-Lever. A gente se encontrava quase sempre num bar na Galeria Metrópole. Gravei A banda antes do festival, mas o disco só saiu depois. Foi o meu primeiro long-play.
Chico: Era muito pouco para imaginar que poderia me manter com aquilo. Foi num show organizado por Pica-pau, em Campinas, que me rendeu 30 mil cruzeiros e alguma coisa. Era um dinheirinho muito bom para um estudante de arquitetura (na época, eu estudava arquitetura). Bem, bebi o cachê com os meus amigos. Já o meu o primeiro salário, na TV Record, era de 500 cruzeiros novos. Estou bem lembrado dele porque foi inteiramente aplicado no pagamento da primeira prestação de um carro, um fusquinha usado. Foram 10 ou 12 prestações. Era receber o ordenado e pagar as prestações. Continuava estudando arquitetura porque não tinha a veleidade de me tornar um profissional da música. Achava que aquele dinheiro que recebia servia apenas pra comprar um carrinho, um violão, pra pagar a cerveja, pra me divertir. Achava que música seria uma atividade passageira.
Chico: Mesmo depois eu duvidava que aquilo fosse uma profissão duradoura.
Chico: Foi o maior sucesso. Deu capa de revista, etc. e tal, meu salário aumentou e passei a fazer shows com muita freqüência. Comecei a viajar muito com o violão e o empresário. Geralmente, ia cantar em clubes no Brasil inteiro. O clube parava a dança, eu cantava meia hora com o violão e a dança voltava depois. Ganhava um dinheirinho, mas não era grande coisa.
Chico: Custei a receber. Ganhava na vendagem de discos, nos shows, na televisão, o que me permitiu comprar um pequeno apartamento no Leblon, além de um outro fusquinha, mas de primeira mão. Mas na época não existia ECAD [Escritório de Arrecadação e Distribuição Central]. Existiam as sociedades arrecadadoras e distribuidoras de direito autoral, que relutavam em aceitar um sócio novo, porque seria mais um a dividir o bolo. Quase um ano depois do lançamento de A banda é que ingressei na UBC [União Brasileira de Compositores].
Chico: No terceiro ano da faculdade. Eu não sabia o que ia ser. Tinha uma vaga idéia de ser jornalista, porque gostava de escrever. Pensei também em ir para o Itamaraty. Achava que lá as pessoas bebiam e faziam músicas e poesias.
Chico: Por causa do João Cabral também. Mas eu gostava muito de arquitetura, como gosto até hoje. Além do mais, havia todo aquele entusiasmo por Brasília, por Oscar Niemeyer. Só não queria ser arquiteto.
Chico: Quem me levou na casa dele foi Aloysio de Oliveira, dono da gravadora Elenco. Aliás, o sonho da gente era ser artista da Elenco, mas eu já tinha contrato com a RGE. Na época, Aloysio era casado com a Cyva, do Quarteto em Cy, e foi ele quem produziu o disco delas cantando Pedro Pedreiro. Aloysio gostou das minhas músicas e tinha aquele coisa generosa, gostava de ajudar, e me levou ao Tom Jobim. Isso foi antes da Banda. Cantei Pedro Pedreiro para o Tom. A partir de 1967, a gente ficou parceiro. A primeira letra que fiz para ele foi para uma música já gravada, chamada Zíngara. Com a letra, ganhou o nome de Retrato em branco e preto. Vinicius estimulou muito a parceria. Mas eu achava que era um risco muito grande fazer letra para Tom, até porque a minha única experiência de letrista para música pronta tinha sido para Lua cheia, de Toquinho. Compor com Tom foi uma coisa que me deu trabalho mas muito orgulho também. Era o máximo ser parceiro dele. Para mim, era a glória.
Chico: Ele era muito engraçado e muito crítico também. Quando o Quarteto em Cy ia gravar Retrato em branco e preto, tirei do verso "eu tenho o peito tão marcado de lembrança do passado" o "tão marcado" e mudei para "carregado de lembrança". Expliquei ao Tom que o "tão" era uma muleta para completar as sílabas da canção. Ele disse, concordando: "Você é um craque." Depois, ele telefonou, pedindo para deixar como estava: "Esse 'eu tenho o peito carregado' tem outra conotação." "Qual?", perguntei. "É que 'peito carregado' pode ser uma tosse."
Chico: Foi engraçado porque Tom dizia que não era uma música para ter letra, que era impossível letrá-la. Falei: "Vou topar o desafio, posso?" Ele disse que eu não conseguiria. Mas eu precisava da música porque estava fazendo a trilha de um filme do Miguel Farias, Para viver um grande amor. Fiz a letra sem mudar nada na música. Nota por nota, está tudo ali. Ele nem implicou porque viajou logo para os Estados Unidos. Como eu precisava da aprovação dele para gravar, mandei a letra para ele e fiquei aguardando a resposta, que veio num telegrama com duplo sentido: "Very exquisite". É que, em inglês, exquisite é bom. Aliás, em todas as línguas, menos em português, exquisite é uma coisa boa, rara. Em português, tem um sentido de estranho. Acho que considerou a letra estranha e, realmente, ela é estranha. Mas ele gostou.
Chico: Ele me mandou a música, que adorei, e comecei a fazer a letra. Escrevi logo: "Vou te contar". E o resto não saía. O tempo passou e Tom ia perdendo a paciência: "Ô Chico! Você não sai do 'vou te contar'? Não quer ficar rico?" Ele sabia que a música iria fazer sucesso e foi realmente um grande sucesso internacional. Acabei desistindo e ele fez a letra. Várias músicas dele - como Nuvens douradas, Rancho das nuvens - passaram por mim e as letras não saíram.
Chico: Foi em meados dos anos 70. Tom até ficou um pouquinho "mordido". Fiz letra também para o Sivuca.
Chico: Fui lançar um disco. Chegando a Roma, fui aconselhado a não voltar, porque no Brasil as coisas estavam muito difíceis. Nem pensava em ficar, porque minha mulher estava grávida de Silvinha e eu queria que ela nascesse aqui. Aluguei um apartamento e Silvinha nasceu lá. Fui ficando e acabou saindo um outro disco com versões de Sérgio Bardotti para o italiano. Depois, fui eu que fiz as versões das músicas de Bardotti para Os saltimbancos, que Antônio Pedro adaptou para o teatro.
Chico: Às vezes, a censura proibia uma música inteira e o advogado da gravadora corria para Brasília. Muitas vezes, o advogado telefonava de lá para dizer que, se mudasse tal palavra, a música estaria liberada. Quase sempre era uma bobagem, como em Partido alto, em que "titica" virou "coisica", "brasileiro" virou "batuqueiro", coisas assim. Era o preço para o disco sair. Naquele disco que gravei ao vivo com Caetano Veloso, a gravadora teve que botar aplauso para esconder uma palavra proibida. O aplauso ficou evidentemente falso.
Chico: Eu não via o Vinicius. Eu queria ser o Vinicius, que conhecia desde criança, porque ele era amigo do meu pai. Queria ser o Vinicius, com mulheres bonitas, tomando aquele uísque, tocando violão, fazendo poesia. Não queria mais nada. Quando veio a Bossa Nova, aumentou meu fascínio e veio uma admiração muito grande.
Chico: Nós estávamos na Argentina, onde Vinicius fazia muitos shows com Toquinho. Maria Bethânia também estava lá. Vinicius me deu uma fita com a música, que eu trouxe para o Brasil e mandei a letra por carta. Ele queria que a música se chamasse Valsa hippie, mas não gostei e sugeri Valsinha, um nome que tinha mais a ver com ele, que usava tudo no diminutivo. Era "mulherzinha", "uisquinho" etc. Fizemos também Olha, Maria, Gente humilde, Desalento e Samba de Orly.
Chico: Ouvia muito Noel Rosa, Ary Barroso, Ismael Silva, Ataulfo Alves, Dorival Caymmi, uma porção deles. Ouvia muito um disco de duetos do Mário Reis com o Francisco Alves. Ouvia também aquelas operetas do cinema, tipo O príncipe estudante. E gostava das músicas americanas com Frank Sinatra, Ella Fitzgerald, das músicas de Cole Porter.
Chico: Já nos anos 80. Escrevi pra ele a letra de Moto contínuo e depois fizemos O grande circo místico, com um roteiro do Naum Alves de Souza, baseado num poema de Jorge de Lima, a pedido do corpo de baile do Teatro Guaíba, de Curitiba. Na verdade, a parceria com Edu vinha sendo adiada desde os anos 70. Edu fez os arranjos do disco Chico canta. Depois do Grande circo místico, veio O corsário do rei e outro balé chamado A dança da meia-lua. Foram três projetos. Edu foi o parceiro com quem fiz o maior número de músicas. Prezo muito a nossa parceria.
Chico: Há a criação de parceria e a criação solitária. São processos diferentes. Quando recebo a música do parceiro, faço a letra sem interferir numa nota sequer. Mas quando a música é minha, vou mudando. Muitas vezes, a música já vem anunciando as palavras. Pelo som, pela musicalidade, aparecem palavras que vão puxar o resto da letra e me obrigam a mudar a música. Quando sou eu que faço, a música é sempre maleável.
Chico: Quando esse "santo" baixa, vem com uma idéia qualquer, um estalo. Depois, vem o trabalho e muitas vezes o trabalho vai até depois da gravação. Um disco meu já estava sendo prensado quando descobri que precisava substituir uma palavra em O futebol. A palavra que entrou foi "anular", mas não me lembro da que saiu. O fato é que tiveram de parar a prensagem e alterar a capa por causa de uma única palavra. Aquela troca era uma coisa muito importante, muito preciosa pra mim. No disco As cidades, aconteceu uma história diferente. Tinha a idéia da letra, mas a música não saía. Me lembrei então de uma música que Dominguinhos havia me mandado em 1983. Saí atrás da fita e ela estava guardada na gaveta. Acabei compondo Xote de navegação. Quer dizer: levamos 15 anos para compor a música. Só Dorival Caymmi seria capaz de levar tanto tempo compondo uma música.
Chico: Aconteceu, mas nada que prestasse. Há pouco tempo mesmo, contei pro Sérgio Ricardo que havia sonhado com ele. O sonho era o seguinte: eu estava num carro, ligava o rádio e ouvia o Sérgio Ricardo cantando uma música. Acordei do sonho com a música inteira na memória, mas fui esquecendo aos poucos. De manhã, não me lembrava de mais nada. Ficou apenas um verso que dizia assim: "Tem livro muito bom, tem livro muito pau." Com o verso, ficou também uma sugestão de título: Samba da biblioteca.
Chico: Quando Ruy Guerra e eu fazíamos as músicas da peça Calabar, saiu uma típica marchinha de carnaval, Boi voador não pode. Por isso, convidamos um cantor especialista em músicas carnavalescas para gravar. Mas ele pediu parceria. "Como assim?", perguntei. Hoje não é mais assim, mas o que ele disse ainda fazia sentido naquele tempo. O compositor fazia a música carnavalesca, mas era o cantor que saía em campo para trabalhar na divulgação, aparecendo nas emissoras de rádios, nos bailes, aonde pudesse ir para divulgar a música. No final das contas, quem ganhava dinheiro era o compositor, que faturava os direitos autorais. Mas não podíamos dar parceria. Era uma música de uma peça de teatro e todas as músicas eram assinadas por mim e pelo Ruy Guerra.
Chico: Com toda a certeza, fazer música com 20 anos de idade é mais fácil. Agora, um livro é como se fosse uma canção enorme, longa, que toma cada dia, durante um ano ou um pouco mais. Mas quando estou compondo, fico tomado pela música.
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